As Raízes do Fundamentalismo Cristão e sua Chegada ao Brasil
FUNDAMENTALISMO CRISTÃO NO BRASIL: ORIGENS, IMPACTOS E O PORVIR
O fundamentalismo cristão é um dos fenômenos mais marcantes da relação entre religião e política no Brasil contemporâneo. Sua presença se manifesta nas igrejas, nas práticas sociais e nas disputas eleitorais, moldando subjetividades e afetando profundamente a cultura e a organização social do país. No entanto, para compreendê-lo à altura de sua complexidade, é necessário percorrer seu caminho histórico, desde suas origens nos Estados Unidos no início do século XX até sua implantação no solo brasileiro, atravessado por dinâmicas coloniais, patriarcais e neoliberais.
Mais do que uma simples adesão às Escrituras, o fundamentalismo cristaliza uma interpretação literalista da bíblia, voltada para a conservação de estruturas de poder e propriedade. Entender o fundamentalismo é, portanto, entender também como ele se entrelaça com interesses econômicos, projetos de dominação cultural e reações às mudanças sociais.
O que é o Fundamentalismo Cristão e como ele surgiu?
Embora hoje a palavra “fundamentalismo” seja muitas vezes associada às versões mais radicais do Islã, sua origem histórica está enraizada no protestantismo dos Estados Unidos, entre o final do século XIX e o início do século XX, mais especificamente na década de 1910. Neste período, a cultura ocidental enfrentava transformações profundas: a teoria da evolução de Darwin, os avanços da crítica histórica aos textos bíblicos e a crescente penetração de ciências humanas no estudo das religiões.1
Esse cenário de transformações desencadeou uma reação defensiva entre setores conservadores do cristianismo protestante, especialmente entre presbiterianos e batistas. Para esses grupos, as novas abordagens teológicas, que aplicavam métodos históricos e críticos à Bíblia, eram percebidas como uma ameaça direta à autoridade das Escrituras e ao cerne de sua fé. Essa tensão levou ao surgimento de um movimento que buscava reafirmar os “fundamentos” da crença cristã, estabelecendo uma interpretação rígida e literal dos textos bíblicos.
Foi nesse contexto que grupos protestantes organizaram conferências e publicaram uma série de panfletos conhecidos como The Fundamentals (1910-1915), que apresentavam uma defesa da inerrância bíblica — a crença de que a Bíblia é absolutamente livre de erros em sua totalidade, devendo ser interpretada literalmente. Esse movimento inicial não apenas rejeitava a crítica moderna às Escrituras, mas também se apresentava como uma resistência cultural e religiosa contra o que percebia como uma ameaça à fé cristã e aos valores morais tradicionais.2
A Seletividade da Inerrância Bíblica
Importante observar que essa inerrância passou a ser aplicada de maneira seletiva: interpretações bíblicas eram moldadas para sustentar um espectro ideológico muito específico. Questões como hierarquia social, propriedade privada e papéis de gênero foram revestidas de uma suposta legitimidade divina.
A postura fundamentalista rejeitava a dinâmica histórica do texto bíblico e favorecia uma leitura que servisse à manutenção de poderes estabelecidos. Em lugar da ênfase reformista e libertadora das Escrituras, impunha-se um retorno a uma “tradição” que, paradoxalmente, era recente e reativa.
A Reestruturação do Fundamentalismo e o Surgimento dos “Evangélicos”
Atravessando a década de 1920, o fundamentalismo começou a ser ridicularizado no ambiente público americano, especialmente após o célebre Monkey Trial (1925), em que John Scopes, um jovem professor de ciências, foi julgado por ensinar a teoria da evolução em uma escola pública no Tennessee, violando a Butler Act, que proibia o ensino de qualquer ideia que contradissesse o criacionismo bíblico. O julgamento se tornou um espetáculo midiático, expondo o fundamentalismo ao escárnio público, retratando-o como anticientífico e retrógrado (DE MARIA, 2019)3
Contudo, longe de desaparecer, o movimento fundamentalista se reorganizou. Durante os anos 1940, em meio ao acirramento entre direita e esquerda no contexto da Segunda Guerra Mundial e com o avanço do fascismo, o fundamentalismo protestante passou por uma divisão interna. De um lado, permaneceram os setores mais radicalizados, assumidamente de extrema direita, defensores de uma leitura rígida e literal da Bíblia. De outro, emergiu um grupo que, embora mantivesse os mesmos princípios teológicos, buscava uma imagem mais moderada e menos beligerante (DE PAULA, 2024)4
Esse segundo grupo começou a adotar o termo “evangélicos”, uma escolha que visava se desvincular da imagem caricatural e agressiva do fundamentalismo. No entanto, essa mudança de nomenclatura não implicava em abandono das ideias essenciais: a inerrância bíblica, a defesa da propriedade privada como princípio divino e uma moralidade conservadora permaneciam centrais. Os “evangélicos” ajustaram seu discurso, explorando meios de comunicação em massa e adotando uma postura pública mais conciliadora, mas mantendo os mesmos princípios doutrinários (PEREIRA, 1992)5.
A Construção de uma Identidade Supradenominacional
O termo “evangélico” ganhou, ao longo do século XX, um sentido supradenominacional, unificando diferentes tradições protestantes — como batistas, presbiterianos e metodistas — sob uma plataforma ideológica comum. Essa identidade foi moldada em torno de princípios como a centralidade da Bíblia, a experiência de conversão pessoal e o compromisso com a evangelização, caracterizando o chamado “ethos evangélico” (LARSEN, 2007)6. Sob a aparência de uma tradição bíblica imemorial, consolidava-se, na verdade, um projeto moderno de poder, alinhado aos interesses culturais e políticos do protestantismo norte-americano, especialmente após a Segunda Guerra Mundial (SANTOS & OLIVEIRA, 2024)7.
Esse movimento não foi apenas uma expansão da fé, mas um projeto que incorporava valores teológicos e éticos específicos, como o individualismo religioso, a valorização da prosperidade e uma moralidade conservadora. Foi nesse contexto que o evangelicalismo se consolidou como um fenômeno religioso global, com grande capacidade de adaptação e apropriação de culturas locais, mantendo, porém, seu núcleo ideológico inalterado (SCHMIDT, 2008)8.
A Entrada do Fundamentalismo no Brasil
A expansão do fundamentalismo cristão para o Brasil não foi uma ação isolada ou puramente religiosa. Ela esteve profundamente vinculada a interesses políticos, econômicos e culturais oriundos dos Estados Unidos, especialmente durante o período de grande influência imperialista norte-americana no continente latino-americano. Esse processo se intensificou após a Segunda Guerra Mundial, quando missões evangélicas apoiadas por grandes corporações e fundações americanas — como a Rockefeller Foundation — começaram a financiar projetos religiosos no país, promovendo não apenas a fé, mas uma visão de mundo alinhada aos interesses capitalistas e ao anticomunismo (SANTOS & OLIVEIRA, 2024).
A partir da década de 1930, a penetração do fundamentalismo teológico no Brasil se deu de forma institucional, especialmente através da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), que funcionou como uma plataforma para a propagação de valores conservadores, em oposição tanto ao catolicismo hegemônico quanto ao ecumenismo progressista (ARAÚJO & OLIVEIRA, 2024). Essa inserção não foi apenas teológica, mas política e cultural, moldando um ethos evangélico caracterizado por um discurso moralista, pelo uso da mídia e pela participação direta na política, especialmente após 1986, quando igrejas pentecostais organizaram-se para eleger seus representantes na Assembleia Nacional Constituinte (ROCHA, 2011)9.
A importação do fundamentalismo não foi, portanto, apenas uma questão de fé, mas de controle cultural e político. A defesa da inerrância bíblica e a rejeição da crítica histórica foram acompanhadas por um discurso moralizante que promovia a obediência à autoridade, a propriedade privada como princípio divino e uma rígida separação entre o sagrado e o secular (DE ARAÚJO & OLIVEIRA, 2024). Essa concepção moldou a formação de lideranças evangélicas que, nas décadas seguintes, não apenas construíram igrejas, mas ocuparam espaços políticos e culturais, defendendo uma agenda conservadora e combatendo qualquer ameaça percebida aos “valores cristãos”.
Fundamentalismo, Evangelicalismo e Poder: Entre o Controle e o Imaginário Popular
O fundamentalismo cristão no Brasil não é apenas uma herança teológica importada dos Estados Unidos, mas o resultado de um complexo processo de articulação cultural, política e religiosa. Como aponta Delcio Monteiro de Lima em Os Demônios Descem do Norte10, o fundamentalismo protestante se expandiu no país como parte de uma estratégia de influência norte-americana na América Latina. Essa influência se manifestou principalmente através do apoio financeiro e organizacional de missões protestantes, que não apenas pregavam uma fé cristã conservadora, mas também promoviam valores culturais e políticos alinhados ao americanismo e ao anticomunismo (LIMA, 1987).
Para Lima, essa penetração missionária foi mais do que uma simples questão de fé. Era uma estratégia de controle cultural, onde missionários vinculavam o cristianismo ao modo de vida americano, promovendo uma ética de obediência, hierarquia e disciplina. Em muitos casos, o “american way of life” era praticamente imposto, reforçando uma lógica de superioridade ocidental e uma rejeição ao comunismo, que era demonizado como uma ameaça ao verdadeiro cristianismo.
Contudo, reduzir o fundamentalismo a uma ferramenta de dominação externa seria ignorar sua complexidade. Como bem observa André Castro em A luta que há nos deuses: da teologia da libertação a extrema-direita evangélica11, o evangelicalismo brasileiro não é apenas uma imposição cultural, mas uma linguagem que organiza o mundo e oferece sentido em meio ao sofrimento e à desigualdade. Para Castro, o fundamentalismo não é apenas uma doutrina imposta, mas uma experiência vivida que traduz ansiedades, medos e esperanças em um universo caótico. A imagem do “Senhor dos Exércitos”, acionada diariamente em milhares de igrejas evangélicas Brasil a fora, especialmente nas periferias, por exemplo, não é apenas um símbolo de poder, mas uma promessa de proteção em um mundo percebido como hostil e ameaçador (CASTRO, 2024).
Se para Lima o fundamentalismo é principalmente uma ferramenta de dominação cultural, para Castro ele é também uma linguagem que mobiliza a sobrevivência, em especial dos pentecostais, grupo de maioria negra e periférica. Esses conceitos não são contraditórios, mas complementares. O fundamentalismo é, ao mesmo tempo, uma estratégia de poder e uma forma de organizar afetos, uma doutrina de controle e uma espiritualidade que dá condições para suportar o processo violento de desintegração social.
Entender o fundamentalismo brasileiro é reconhecer que ele não é um bloco monolítico. Enquanto as missões norte-americanas promoviam uma fé conservadora, lideranças locais adaptavam essa fé para dialogar com as experiências de sofrimento e exclusão de seus fiéis. E mesmo dentro dos seminários financiados por interesses estrangeiros, surgiram vozes de resistência, como a Teologia da Libertação, que propunha uma fé comprometida com a justiça social e a transformação da realidade.
Contudo, como observa Castro, a Teologia da Libertação e seu “Deus Libertador” perderam força à medida que o contexto político e social se transformou. Em vez de uma fé que mobilizava para a justiça social, muitos evangélicos passaram a encontrar sentido na imagem do “Senhor dos Exércitos”, um Deus que não promete transformação social, mas proteção em meio ao caos. Para Castro, essa transição não é apenas uma derrota política, mas uma reorganização da experiência religiosa em resposta a um mundo cada vez mais marcado pela insegurança e pela desigualdade. Reconhecer essa complexidade é um passo necessário para evitar simplificações
Conclusão
A trajetória do fundamentalismo cristão no Brasil revela um fenômeno multifacetado. Inicialmente introduzido como uma reação conservadora ao pensamento moderno nos Estados Unidos, ele foi adaptado ao contexto brasileiro como uma força de controle cultural, reforçando valores conservadores e servindo a interesses políticos alinhados ao americanismo e ao anticomunismo. Contudo, sua penetração não se limitou ao controle. Ao longo do texto, vimos que o fundamentalismo também se tornou uma linguagem de resistência para muitos que vivem à margem da sociedade, oferecendo sentido em meio a um mundo em colapso.
Esse fenômeno não pode ser reduzido a uma simples ferramenta de dominação ou a uma experiência autêntica de fé. Ele é ambos. Ao mesmo tempo que mobiliza recursos políticos e econômicos para reforçar hierarquias e valores tradicionais, ele também é uma linguagem que organiza o sofrimento e oferece segurança emocional.
O fundamentalismo cristão brasileiro é, portanto, um reflexo das contradições da modernidade. Ele cresce não apenas porque é imposto, mas porque dialoga diretamente com as angústias de uma população que vive a precarização, a exclusão e o medo. Compreendê-lo é entender que ele não é uma anomalia, mas uma resposta ao esgotamento do progresso e à desintegração social que marca nosso tempo.
- Breno Martins. Água mole, pedra dura: modernidade e fundamentalismo segundo Pierucci. REVER: Revista de Estudos da Religião, v. 13, n. 2, p. 43-65, 2013
↩︎ - DE LIMA, Jair Araújo. Fundamentalismo: um debate introdutório sobre as conceituações do fenômeno. Revista Cronos, v. 12, n. 1, 2011. ↩︎
- DE MARIA, Tayná Louise M. M. S. A recepção do caso de John T. Scopes pela imprensa brasileira em 1925. Rio de Janeiro, 2019, p. 31. ↩︎
- DE PAULA, Leandro. Quando fé e política se aproximam: o fundamentalismo como ideia nos EUA e no Brasil (1920-2010). Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Campinas, v.26, e024009, abr./ago., 2024, p. 7. ↩︎
- PEREIRA, Miguel Baptista. Modernidade, Fundamentalismo e Pós-Modernidade. Revista Filosófica de Coimbra, 1992, p. 207. ↩︎
- LARSEN, Timothy. Defining and locating evangelicalism. The Cambridge companion to evangelical theology, v. 2007, p. 1-14, 2007. ↩︎
- SANTOS, Lyndon de Araújo; OLIVEIRA, Álvaro Ramon Ramos. The Construction of the Evangelical Protestant Ethos and the Insertion of the Theological Fundamentalism in Brazil (1930–1964). International Journal of Latin American Religions, 2024, p. 738-760. ↩︎
- SCHMIDT, Darren W. The Place of Church History in the Rise of Evangelicalism. Canadian Society of Church History, 2008. ↩︎
- ROCHA, Daniel. “Ganhando o Brasil para Jesus”: alguns apontamentos sobre a influência do movimento fundamentalista norte-americano sobre as práticas políticas do pentecostalismo brasileiro. Horizonte, v. 9, n. 22, p. 583-604, 2011 ↩︎
- DE LIMA, Délcio Monteiro. Os demônios descem do norte. F. Alves, 1987. ↩︎
- CASTRO, André. A luta que há nos deuses: da teologia da libertação à extrema-direita evangélica. Editora Machado, 2024. ↩︎