Cultura do Estupro e Moda Modesta: o que eles tem em comum?

O que é ser uma mulher cristã ideal?

Essa pergunta já passou pela cabeça de muitas de nós — às vezes em oração, às vezes em dúvida, outras tantas em desespero.
Ser doce, recatada, modesta. Falar manso, sonhar com o casamento, esperar pelo sexo.
Mas e se você seguir tudo isso à risca… e ainda assim for humilhada?

Foi o que aconteceu com a influenciadora cristã Jordana Vucetic. Convertida há seis anos, hoje ela encarna o ideal da mulher virtuosa segundo muitos padrões evangélicos contemporâneos: fala suave, estética modesta, conteúdos voltados para submissão e santidade.
Mas bastou um detalhe do passado vir à tona — o fato de ela não ser mais virgem — para que um influenciador adepto dos movimentos de supremacia masculina cristã fizesse um vídeo com o título:

“Deu pra todo mundo e na minha vez quer esperar.”

A pergunta que fica é:


Se nem a mulher que segue o roteiro da pureza é respeitada, então do que serve essa cultura da modéstia? E a quem ela realmente protege?

O que é a modéstia?

Modéstia, dentro do imaginário cristão conservador, é frequentemente apresentada como uma virtude — uma expressão de pudor, decência e reverência. Biblicamente, ela aparece como ideal moral (1Tm 2:9), muitas vezes traduzida em códigos de vestimenta, mas também de comportamento, voz, corpo e desejo.

Porém, quando falamos de moda modesta, estamos nos referindo a algo muito mais complexo. A moda modesta não é só sobre se vestir de maneira recatada; ela é uma linguagem visual, uma identidade estética e um dispositivo simbólico que demarca quem é “de dentro” e quem é “de fora”.

De acordo com a pesquisadora Glicia S. Gripp1, que estudou mulheres católicas conservadoras no Brasil, a moda modesta funciona como uma ferramenta simbólica de distinção moral. Ela aponta que, nesse contexto, a aparência se torna mais importante que a fé propriamente dita — o valor espiritual das mulheres é medido pela sua reputação estética, e não por sua espiritualidade interior​.

E essa estética não é universal: ela se adapta aos nichos e às tendências. Nas igrejas pentecostais mais tradicionais, modéstia pode significar usar saias longas, evitar maquiagem e manter o cabelo longo e preso em coques. Já nas igrejas evangélicas mais modernas — as chamadas “churches” ou igrejas da parede preta — a modéstia aparece com cara de clean girl: camisas oversized com frases em inglês, calças largas de alfaiataria e um visual digno de influencer gospel.

Apesar das diferenças, todas essas versões têm algo em comum: a modéstia como símbolo de santidade. Mas o problema começa quando essa simbologia vira régua para medir o valor moral de uma mulher — e sua dignidade como ser humano.

A santidade tá na moda…

Nos últimos anos, a modéstia deixou de ser apenas uma orientação de fé para se tornar uma bandeira visual em um cenário global de retorno ao conservadorismo. Com a ascensão da extrema-direita — no Brasil e no mundo — surgem também movimentos que instrumentalizam a fé para estabelecer fronteiras simbólicas entre o que é puro e o que é corrupto, entre o que deve ser aceito e o que deve ser expurgado da comunidade religiosa.

Nesse cenário, o corpo feminino volta a ser central — e não como sujeito de direitos, mas como objeto de controle. A moda modesta, nesse contexto, funciona como um símbolo de distinção moral, mas também como uma ferramenta de vigilância coletiva.

Gripp observa que essa estética é meticulosamente construída: vestidos vintage com cintura marcada, saias abaixo dos joelhos, roupas que revelam a “figura feminina”, mas não as “formas”. Em blogs e vlogs, as roupas são descritas e fotografadas como sinais visíveis de uma espiritualidade encenada, muitas vezes mais preocupada com a reputação do que com a fé em si​.

É sobre performance. É sobre um corpo que precisa sinalizar o tempo inteiro que é puro, discreto, submisso. E mesmo assim, como no caso de Jordana, isso não é garantia de proteção.

Se por um lado a modéstia é vendida como escolha, por outro, ela define quem pode ser visto e aceito como mulher cristã ideal. É filtro social. E quem não passa por esse filtro — mesmo que tenha se arrependido, se convertido, se adaptado — é prontamente descartada ou humilhada.

Quando a pureza vira moeda de troca

A cultura da modéstia reflete a ideia de que uma mulher vale pelo que ela não fez. Não transou. Não mostrou. Não ousou. E se ousou — ainda que no passado — vai pagar por isso até o fim. A Jordana seguiu o roteiro. Se converteu, mudou, testemunhou. Ainda assim, foi alvo de um linchamento simbólico. Porque, no fundo, o problema não era a roupa dela. Era o corpo. Era o passado. Era o fato de ela ser mulher.

E esse é o ponto que talvez doa mais: a modéstia, quando usada como regra moral e não como expressão de fé pessoal, não protege as mulheres. Só muda o tipo de controle. Em vez de ser observada pelo desejo masculino, agora ela é julgada pelo tribunal da virtude cristã. E os juízes são os mesmos: homens, com poder de voz e com influência na mão.

Enquanto isso, os dados de violência sexual seguem nos lembrando que não é a roupa que define quem será abusada. A maioria dos casos acontece dentro de casa, com conhecidos, e até com líderes religiosos. E nesse cenário, o figurino da modéstia serve muito mais como blindagem institucional do que como escudo real para as mulheres.

E se o problema nunca foi a roupa?

A modéstia pode ser uma escolha espiritual legítima, sim. Mas quando ela é usada para medir o valor das mulheres — e pior, para justificar a violência contra elas —, ela deixa de ser virtude e passa a ser armadilha.

Se até quem performa modéstia é tratada como lixo, então a pergunta que fica é:
Será que o problema alguma vez foi a roupa? Ou estamos só maquiando a mesma velha misoginia com babados, laços e saias godê?

Misoginia, Bíblia e a tradição judaico-cristã: o medo do corpo feminino como herança religiosa

Para entender por que a modéstia virou uma espécie de “doutrina do corpo feminino” nas tradições cristãs, é preciso voltar um pouco mais no tempo — para antes mesmo do Novo Testamento. Lá onde o que hoje chamamos de Bíblia ainda era um conjunto de tradições em formação, permeadas por mitologias, influências culturais e disputas de poder simbólico.

Um desses textos formadores do imaginário judaico é o chamado Livro de Enoque, que não faz parte do cânone da Bíblia cristã, mas circulou amplamente entre os judeus do período do Segundo Templo e influenciou muitos autores do Novo Testamento. Dentro dele, encontramos o Mito dos Vigilantes — uma narrativa que ajuda a entender como o corpo feminino passou a ser associado ao caos, à queda e à desordem cósmica.

O que é o Mito dos Vigilantes?

De acordo com o Livro dos Vigilantes (1 Enoque 6–16), um grupo de anjos — os “Vigilantes” — observa da morada celestial a beleza das mulheres humanas. Seduzidos, eles descem à Terra, tomam essas mulheres como esposas e com elas geram filhos gigantes. A união entre os seres celestiais e as mulheres corrompe a ordem divina, trazendo violência, destruição e o surgimento de demônios — os espíritos malignos que nascem dos gigantes mortos.

Como explica o teólogo Dr. Kenner Terra2, essa narrativa associa diretamente a beleza e a sexualidade feminina à desordem cósmica. A mulher, nesse imaginário, deixa de ser apenas um ser humano: ela se torna o portal do caos — a responsável por fazer cair até os anjos​.

A reverberação bíblica do mito

Essa associação simbólica não ficou restrita ao livro de Enoque. Ela reverbera nos textos bíblicos que foram canonizados, especialmente nas epístolas do Novo Testamento. Um exemplo claro disso é 1 Coríntios 11:10, onde Paulo escreve que:

“A mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de autoridade, por causa dos anjos.”

Essa frase, que por vezes escapa a nossa percepção, ganha sentido se conectada à tradição do Mito dos Vigilantes, ou seja, a ideia é que as mulheres deveriam se cobrir para não atrair a atenção dos seres celestiais, repetindo a tragédia descrita em Enoque. É uma linha direta entre a beleza feminina e a ameaça espiritual.

Esse medo também aparece em 1 Timóteo 2:9–15, quando a mulher é instruída a se vestir com modéstia, manter o silêncio e focar na maternidade como forma de “salvação”. O texto justifica essa submissão dizendo que foi Eva quem pecou primeiro, e não Adão — ou seja, mais uma vez, a mulher é o elo fraco, o corpo perigoso, a fonte da queda.

Em 1 Pedro 3:3–4, a mesma ideia retorna:

“A beleza de vocês não deve estar nos enfeites exteriores […] mas no seu interior, que não perece.”

Não se trata de um conselho neutro. Trata-se de um reforço do paradigma de que a mulher precisa ser invisível para ser aceitável, que seu corpo deve ser escondido para não ameaçar a ordem social e espiritual.

Do mito à moral: o controle do corpo feminino na fé

A partir dessas narrativas, cria-se um imaginário religioso em que a mulher é eternamente suspeita: seu corpo é uma ameaça, seu desejo é um perigo, sua presença deve ser regulada. E esse imaginário não ficou no passado. Ele reaparece nas teologias contemporâneas que defendem a moda modesta como símbolo de santidade — não como liberdade de expressão, mas como necessidade espiritual. A roupa deixa de ser uma escolha e se torna um escudo contra a culpa que o próprio sistema impõe.

Assim, a doutrina da modéstia — longe de ser um fruto puro da fé cristã — é também herdeira de um medo ancestral do feminino. Um medo que produziu mitos, versículos, regulações e, até hoje, justifica o controle do corpo das mulheres em nome da ordem divina.

Conclusão

Por isso, da próxima vez que você pensar que a moda modesta está dignificando as mulheres que são constantemente objetificadas pela mídia, pela cultura pop ou até mesmo pelos homens dentro das igrejas, pense de novo.

Quando você acreditar que esse é o caminho para finalmente sermos respeitadas nos espaços públicos, nos púlpitos e nos relacionamentos — lembre-se: cultura da modéstia e cultura do estupro são duas faces da mesma moeda.

Ambas operam na mesma lógica: a de que a mulher deve ser avaliada, aceita ou descartada com base no que veste, no que viveu, no que esconde ou revela.
Ambas exigem uma performance moral para que possamos ser vistas como dignas.
Ambas negam o mais básico: a nossa humanidade.

A objetificação continua. Só muda o figurino.
Isso não é liberdade. Isso é uma falsa impressão de autonomia, cuidadosamente empacotada em nome de Deus, pelas mãos do patriarcado. Vigia!

  1.  GRIPP, Glicia Salviano. Flores da modéstia: o pretexto do vestido conservador católico. Ciências Sociais Unisinos, v. 59, n. 2, 2023. ↩︎
  2. TERRA, Kenner Roger Cazotto. MISOGINIA CÓSMICA NA LITERATURA JUDAICO-CRISTÃ. Revista Jesus Histórico. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015. ↩︎

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